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EUA bloqueiam fundo para mulheres negras e impactam cenário no Brasil

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4 min

20 jun 2024

Atualizado: 21 jun 2024

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No último mês, a justiça norte-americana bloqueou as operações do Fearless Fund, fundo de venture capital criado para investir exclusivamente em empresas lideradas por mulheres negras. O 11º Tribunal de Apelações dos Estados Unidos, em Atlanta, alegou que o fundo é "substancialmente provável" de violar a Lei dos Direitos Civis de 1866, que garante direitos iguais sob a lei e proíbe o uso da raça na realização e execução de contratos. O Fearless Fund foi processado pela American Alliance for Equal Rights (AAER) com o argumento de que, ao focar especificamente em mulheres negras, o projeto estaria discriminando e excluindo outros grupos sociais.

"A Lei dos Direitos Civis de 1866 foi implementada após a escravidão nos EUA para que pessoas negras tivessem oportunidades e liberdade económica, dando-lhes o direito legal de celebrar contratos. Agora, viraram essa lei de cabeça para baixo. Ela foi criada para proteger e prover, mas está sendo usada como uma forma de desmantelar a diversidade", disse Arian Simone, CEO e cofundadora do Fearless Fund, à CNN em junho. "Leis criadas para enaltecer os norte-americanos negros agora estão sendo manipuladas para minar iniciativas voltadas à diversidade e à equidade."

A decisão levantou uma série de debates sobre discriminação racial e equidade no mercado de inovação, tecnologia e investimentos, principalmente nos Estados Unidos, onde empresas lideradas por mulheres negras recebe menos de 1% de todo o dinheiro de capital de risco investido no país, de acordo com dados divulgados pelo Fearless Fund. Em outras regiões, empreendedores, investidores e lideranças do setor têm chamado atenção para os efeitos que a decisão pode ter no mercado de forma geral, com repercussões significativas não apenas nos EUA, mas em todo o mundo - inclusive no Brasil.

"A decisão do tribunal passa uma mensagem de que a diversidade na educação, na tecnologia, na inovação, nos investimentos ou em qualquer outro lugar é irrelevante. Ela parte da premissa de que fundos de apoio a empresas não podem usar a raça como determinante de seleção. Entretanto, na prática, isso já acontece na indústria de investimentos, onde 97% da alocação de capital acontece em empresas de pessoas brancas", afirma Luana Ozemela, vice-presidente de impacto e sustentabilidade no iFood e cofundadora da BlackWin, a primeira plataforma de investidoras-anjo negras do Brasil, ao Startups.

Um pouco de contexto

Fundado em 2018, em Atlanta, o Fearless Fund investe em empresas lideradas por mulheres negras em estágio pré-seed, seed e série A, com a missão de preencher a lacuna no venture capital para mulheres negras fundadoras que constroem empresas escaláveis ​​e de alto crescimento. Em seu site oficial, o veículo de investimentos indica ter mais de 40 startups em seu portfólio, incluindo nomes como CareCoPilot, Femly e Range Beauty.

A movimentação contra o Fearless Fund não é um caso isolado. "Estamos em um momento crítico no qual muitas pessoas influentes a nível global estão questionando as políticas de ações afirmativas em todos os âmbitos", observa Luana.

A oposição contínua ao Fearless Fund é liderada pelo ativista conservador Edward Blum, que também esteve à frente de processos movidos contra ações afirmativas nas universidades. Em junho de 2023, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou como inconstitucionais as políticas afirmativas de admissão nas universidades norte-americanas, que visam promover o acesso e a inclusão de alunos negros, hispânicos ou de outros grupos sub-representados. A decisão proibiu as Universidades de Harvard e da Carolina do Norte de usarem critérios raciais no processo de seleção dos estudantes.

Blum também liderou ações contra o diretor do Museu Nacional do Latino Americano do Instituto Smithsonian, por causa de um programa de estágio que visa atrair latinos para aumentar a representatividade nos empregos em museus. Blum e seus aliados defendem que essas iniciativas são inconstitucionais ao beneficiarem pessoas negras e latinas em detrimento de outros grupos étnicos.

"O que políticas afirmativas e programas como o Fearless Fund estão tentando corrigir são as desigualdades sistêmicas enraizadas nos nossos sistemas para que todos verdadeiramente se beneficiem e possam contribuir plenamente com seus talentos", destaca Luana Ozemela. "O Fearless Fund investe em mulheres negras empreendedoras. Mulheres como eu e como as da BlackWin. O questionamento [das ações afirmativas em todos os âmbitos] já chegou no Brasil e representa uma ameaça aos avanços de desenvolvimento de capital humano viabilizados pelas políticas e ações afirmativas conquistadas", pontua.

Luana Ozemela, vice-presidente de impacto e sustentabilidade no iFood e cofundadora da BlackWin, a primeira plataforma de investidoras-anjo negras do BrasilLuana Ozemela, vice-presidente de impacto e sustentabilidade no iFood e cofundadora da BlackWin, a primeira plataforma de investidoras-anjo negras do Brasil (Foto: Divulgação) 

Como fica o Brasil nessa história?

 

"O Brasil adora copiar os Estados Unidos de alguma forma, e espero que o que está acontecendo lá não chegue tão fortemente aqui, porque isso será um retrocesso sem tamanho", avalia Monique Evelle, investidora-anjo e cofundadora da plataforma Inventivos, plataforma de formação, conexão e investimento na nova geração de empreendedores da América Latina. 

 

Monique alerta que movimentações recentes nos EUA contra políticas afirmativas já vêm influenciando o mercado brasileiro nos últimos tempos. "Estamos vendo empresas tirarem o setor de Diversidade e Inclusão considerando a decisão da Suprema Corte dos EUA com as universidades. Isso pode impactar empresas que estão no Brasil e atendem os EUA, ao pensarem que criar vagas afirmativas é inconstitucional. É um movimento perigoso e acredito que, infelizmente, isso vai chegar no Brasil. Minha preocupação é que aconteça muito mais rápido do que imagino", analisa Monique.

 

No Brasil, apenas 4,7% das startups brasileiras foram fundadas exclusivamente por mulheres, e elas receberam apenas 0,04% dos mais de US$ 3,5 bilhões aportados no mercado brasileiro em 2020, de acordo com o estudo Female Founders Report 2021, elaborado pelo Distrito, pela Endeavor e a B2Mamy. A pesquisa revela que 19,1% das mulheres brasileiras fundadoras de startups são negras (sendo 5,8% pretas e 13,3% pardas). Apesar de uma luta por direitos cada vez mais evidente, dados específicos sobre a participação de mulheres negras no venture capital brasileiro ainda são desconhecidos.

 

"Poucos fundos no Brasil são direcionados exclusivamente para pessoas negras", afirma Monique. Alguns exemplos são o Black Founders Fund, do Google for Startups, e o Semente Preta, do Nubank, além de iniciativas como o BlackRocks Startups, de Maitê Lourenço, e a própria BlackWin, de Luana Ozemela. "Agora que estamos conseguindo levantar dinheiro e começando a ter fundos de investimento direcionados para grupos sub-representados, cortam essa oportunidade. Faz menos de uma década que começamos a avançar e já estamos retrocedendo novamente. Se não falarmos publicamente sobre isso, pode ser que as pessoas achem normal suspender fundos que tenham teses voltadas para grupos sub-representados", acrescenta.

 Monique Evelle, investidora-anjo e cofundadora da plataforma InventivosMonique Evelle, investidora-anjo e cofundadora da plataforma Inventivos (Foto: Divulgação) 

Implicações globais

 

Arthur Lima, CEO e cofundador da AfroSaúde, plataforma que conecta pacientes a profissionais negros de saúde e bem-estar de todo o Brasil, compartilha receios semelhantes. "O primeiro pensamento que tive ao saber do caso Fearless Fund foi: isso será reproduzido no Brasil e será um desastre. O medo de encontrarem uma brecha jurídica para de fato vetarem investimentos afirmativos - não que isso já não seja feito de forma consciente pelo mercado brasileiro - mas essa ação sob a chancela da justiça é como fincar uma faca na justiça social de um país", pontua.

 

O empreendedor acredita que, como possíveis efeitos do que ocorreu nos Estados Unidos, outros fundos internacionais começarão a adotar o mesmo comportamento, de forma direta ou indireta. "O tema da diversidade e inclusão racial já está perdendo força no mercado, e o impacto dessa decisão será sentido em breve", observa. Segundo Arthur, essa tendência pode resultar na diminuição significativa nos esforços para promover a equidade racial em diferentes setores.

 

Por isso, aponta Arthur, a estratégia de criar fundos afirmativos liderados por grupos sub-representados e de defender essa pauta dentro dos fundos tradicionais é tão importante. "A redução no investimento em iniciativas de diversidade e inclusão pode levar a um retrocesso nos avanços conquistados até agora, prejudicando tanto o desenvolvimento econômico quanto o social. Temos que tentar garantir que as questões de diversidade e inclusão continuem sendo priorizadas, mesmo em um cenário global de menor apoio e recursos limitados", finaliza.

 Arthur Lima, CEO da AfroSaúde (Foto: Robson de Paiva Leandro)Arthur Lima, CEO da AfroSaúde (Foto: Robson de Paiva Leandro) 

E agora?

 

Embora a decisão da justiça norte-americana impeça o Fearless Fund de conceder subsídios para mulheres negras, essa não é necessariamente a palavra final sobre o caso. De acordo com o TechCrunch, o Fearless Fund está avaliando suas opções sobre o que fazer a seguir, incluindo a possibilidade de um julgamento.

 

“Os Estados Unidos deveriam ser uma nação onde se tem a liberdade de realizar, de ganhar e de prosperar. No entanto, quando tentamos nivelar o campo de jogo para grupos sub-representados, as nossas liberdades foram sufocadas. Devemos continuar esta luta pela próxima geração de meninas que merecem crescer numa América que lhes permita realizar os seus sonhos em vez de os proibir”, disse Arian Simone, CEO e cofundadora do Fearless Fund, em comunicado.

 

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