Afinal, o que está por trás da onda de milhões de pessoas pedindo para sair de seus empregos?
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Em 2021, 39 milhões de pessoas pediram para sair de seus empregos nos Estados Unidos. Apenas em outubro, o número ficou perto de 4,2 milhões. Alguns calculam que, mensalmente, 2,4% da força de trabalho norte-americana simplesmente pediu as contas. Mas não é só por lá, não. Na Europa, países como Alemanha estão vendo índices de demissões de 6% do total da força de trabalho. Na China, jovens estão postando fotos de si mesmos deitados para protestar contra a cultura do “996”, que impera nas startups chinesas. E, por aqui no Brasil, as conversas começaram a surgir em torno do aquecimento do mercado de tecnologia – e a dificuldade em achar profissionais. Há um padrão em todas essas informações. Um conflito entre modelos tradicionais e novas formas de pensar que, a gente sabe, são a força motriz da inovação. Mas também de um desconforto momentâneo. Afinal, o que há por detrás da tal da “Great Resignation”?
Antes de falar as razões, bom é sempre falar quem está por trás disso. Nos Estados Unidos, é uma demografia bem específica de colaboradores pedindo as contas: pessoas de idades entre 30 e 45 anos, mais conhecidos como, os millennials. De acordo com pesquisa feita pela Harvard Business Review, as demissões entre o pessoal dessa demografia aumentaram em mais de 20% entre 2020 e 2021. No Brasil, os millennials também estão querendo ver uma mudança no mercado de trabalho, segundo pesquisa da Deloitte, 36% dizem que querem sair de seus empregos no próximo ano. Além da idade, essa galera tem algo em comum: muito provavelmente, trabalham no setor de tecnologia. De acordo com pesquisa feita pela Talent LMS em parceria com o Workable, 75% dos colaboradores de tecnologia estão considerando mudar de emprego nos próximos 12 meses (no geral, essa taxa já é alta, de 55%). O setor de tecnologia, segundo pesquisas, foi o que teve o maior aumento de demissões voluntárias (4,5%).
Em fevereiro de 2022, eram 11,3 milhões de vagas, contra 6,27 milhões de desempregados. Ou seja, 5 milhões de vagas a mais do que pessoas sem ocupação. É o que mostra a pesquisa Job Openings and Labor Turnover, anunciando um número recorde e a dificuldade das empresas de conseguirem novos talentos. O que está acontecendo?
Se tem um fator externo que uniu Brasil, Estados Unidos, Alemanha e China, foi a pandemia de Covid 19. Em tempos diferentes, os países entraram e saíram de situações de isolamento social forçado, levando a empresas de todas as geografias adotarem a mesma solução: o home office. Os impactos positivos e negativos vieram meses depois. Alguns se sentiram exaustos de reuniões online, outros se viram presos em uma quantidade excessiva de trabalho, sem conseguir se desconectar, tiveram aqueles que conseguiram ficar mais próximos da família e ganhar horas com trânsito. Isso sem contar no grupo de pessoas que, simplesmente, percebeu que podia morar fora das cidades (e continuar sua vida profissional normalmente), se instalando no interior ou no litoral. Alguns passaram a trabalhar para empresas de outros países.
A flexibilidade vinda do trabalho remoto se tornou um ativo para os colaboradores. Tanto que, no meio deste ano, os alto-executivos da Apple ficaram em choque que os funcionários pediram para não voltar para o presencial. Se liga nesta carta que os funcionários da Apple mandaram ao Tim Cook: “Durante o ano passado, muitas vezes nos sentimos não só sem voz, mas às vezes ativamente ignorados. Mensagens como, ‘sabemos que muitos de vocês estão ansiosos para se reconectar pessoalmente com seus colegas no escritório’, sem nenhuma mensagem reconhecendo que existem sentimentos diretamente contraditórios entre nós, parece desdenhoso e invalidante. Muitos de nós não apenas nos sentimos bem conectados com nossos colegas em todo o mundo, mas também melhor conectados agora do que nunca. Esperamos trabalhar como estamos agora, sem a necessidade diária de retornar ao escritório. Parece que há uma desconexão entre a forma como a equipe executiva pensa sobre o trabalho remoto / local flexível e as experiências vividas por muitos dos funcionários da Apple”.
Esta é aquela hora que lembramos que a Apple acabou de gastar alguns milhões de dólares na inauguração de um novo HQ, o campus todo desenhado a partir de visões de Steve Jobs. Juntamos isso a uma pesquisa feita pela Microsoft: 4 entre 10 jovens informaram que sairiam de seus empregos caso as empresas cortassem de vez o Home Office.
Ficar mais em casa também aflorou um lado mais exigente por parte das pessoas. Pesando, principalmente, nos e-commerces e serviços de entrega. Apenas em 2020, houve alta de 343% nas reclamações de aplicativos de delivery. Um exemplo disso foram as empresas, como a Magalu, que conseguiram levar de 5% para 70% a fatia das entregas feitas em 48 horas. E para comida e compras então? Se antes era aceitável esperar uma hora para receber seu prato e um dia útil para receber compras, agora a batalha está pelos minutos. Visto a ascensão da daki, startup que se tornou unicórnio em poucos meses, com o conceito de entregas ultrarrápidas (de menos de 15 minutos). Qual o custo humano disso? Se, de um lado as pessoas estavam sentindo a pressão de seus trabalhos, elas responderam criando mais pressão em outros serviços. Ou seja, uma panela esperando para explodir.
Há quem chame esse movimento de demissão em massa, principalmente da galera da tecnologia, por outro nome: “great reconsideration”. O que significa que tem uma série de profissionais literalmente parando para pensar se seus trabalhos, mesmo em empresas renomadas e entre as Big Techs, valem mesmo a pena. Uma das razões está, como falamos acima, na flexibilidade do trabalho em casa e em horas diferentes. Mas tem um “elefante” na sala que devemos falar: exigências em alta. Porque se as pessoas passaram a trabalhar mais em casa, isso significou que os usuários passaram a exigir cada vez mais de serviços como o Slack, o Zoom, a Netflix, a Amazon e aplicativos de delivery como um todo. O que significa, para o pessoal da tecnologia é: a pressão aumentou. E, embora isso tenha levado a uma produtividade incrível, também trouxe junto o estresse e a exaustão. No final das contas, eles começaram a se perguntar: será que vale a pena passar por isso por essa empresa (não importa o quão legal a empresa seja no papel ou qual a posição dela nas listas da Forbes)? Por esse cargo e posição?
Lá no começo falamos de 996, mas saiba que este não é um código secreto, e sim o apelido dado para o ato de trabalhar das 9h as 21h, por seis dias da semana. Um dos grandes divulgadores desta cultura profissional foi ninguém menos que Jack Ma. Em algumas entrevistas, o executivo elogiou os funcionários que seguiam este regime, dizendo que eles com certeza veriam retorno para o seu trabalho duro. E, apesar das críticas de órgãos oficiais, o modelo se tornou a base para as startups e companhias de tecnologia chinesas. Em 2019, algumas rachaduras já podiam ser vistas na fachada do “work hard, gain harder”, com uma série de protestos acontecendo online e ao vivo contra esse estilo de vida. A crítica ganhou força no meio deste ano por causa de um meme. O texto feito por Luo Huazong, que logo depois foi deletado pela censura chinesa, elogiava o ato de “tang ping”, ou seja, “deitar de comprido”, como um protesto contra as pressões profissionais. Para este manifesto, deitar seria a solução para as exaustivas horas de trabalho e cultura de exaustão promovida aos jovens como o caminho do sucesso. Em entrevista, Luo contou que depois de trabalhar por anos em um trabalho estável, ele disse que “começou a se sentir como uma máquina”, então se demitiu, e passou a viver um estilo de vida que ele mesmo chamou de “deitado”, ou seja, no lugar das muitas horas no escritório ou fazendo algo considerado produtivo, apenas horas descansando. E, apesar de deletado, o assunto virou meme, com as pessoas usando imagens como a deste gato que colocamos em cima, simplesmente deitados, descansando. De meme, virou movimento, chamado “tang-pinging”: basicamente, os jovens milennials chineses se opondo ao ambiente hipercompetitivo das corporações de lá. Quase que um minimalismo profissional. Um sinal claro de que, bem, está todo mundo mesmo cansado.
No final das contas, o resultado percebido, independente da linguagem, foi que continuar a produtividade em alta em um momento de pandemia mundial teve um custo, a exaustão mental foi um deles. A pressão, o maior número de horas de trabalho em casa e a falta de flexibilidade das posições intermediárias em companhias de tecnologia foram ingredientes que se juntaram a um caldeirão que já contava com: pandemia mundial, afastamento social, luto por parentes ou amigos e medo de pegar um vírus a qualquer momento. Não é de se espantar que, quando misturamos tudo isso, o resultado foi um só: o caldeirão queimou. Só no Brasil, de julho do ano passado até julho deste ano, houve um aumento de 122% nas pesquisas sobre “Burnout” no Google, com ênfase em como perceber os sintomas. O Hospital das Clínicas de São Paulo viu, apenas nos primeiros meses de 2021 uma alta em 21% nos diagnósticos de burnout em relação a 2020. E isso não atingiu apenas os funcionários, pesquisa feita pela UFMG mostrou que, no Brasil, mais de 30% dos empreendedores passaram a procurar por tratamento psicológico durante a pandemia (53,3% dos que fizeram acompanhamento psicológico foram diagnosticados com ansiedade). Nos Estados Unidos, pesquisa da McKinsey mostrou que 45% das mulheres e 35% dos homens sentiram a síndrome de esgotamento durante o ano. Outra pesquisa norte-americana mostra que o burnout é a razão número um para 40% dos que pediram demissão neste ano. Para vocês terem uma ideia, a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) colocou novos filtros sobre a síndrome, e, a partir de janeiro de 2022, passará a considerar o esgotamento como uma “doença ocupacional”, ou seja, ligada ao ambiente de trabalho e às empresas. Um outro dado aqui, este vindo diretamente do mercado de tecnologia, 58% já sofreram algum tipo de burnout, e, aqueles que sofreram, tem duas vezes mais chances de pedir demissão.
A parte mais prática, que é pedir demissão ou procurar novas posições, depois desse tipo de experiência, ganhou um peso “filosófico”. Quase que uma epifania. Para muitos, a pergunta foi muito menos: será que devo continuar trabalhando nesta empresa? E sim: será que preciso ser produtivo a qualquer custo? Será que não posso equilibrar melhor o tempo de trabalho e de vida social? Não são perguntas novas, e, com certeza, os Millenials não são os primeiros a faze-las. A questão aqui é que elas entram em conflito direto com a cultura de startups, que usa o lado pessoal dos colaboradores como um ativo em favor da produtividade e do crescimento exponencial, que exige muitos dias de dedicação em troca do tão sonhado status de unicórnio, onde não só a alta produtividade é exigida, como é comemorada. Jeff Bezos já falou que não vê a relação de trabalho-vida pessoal como uma relação de equilíbrio, e sim de “compensação”. Para alguns especialistas, a pandemia surgiu como uma catalisadora do conflito e a criação de um “novo tipo de trabalhador”, que foca mais na flexibilidade e no equilíbrio emocional do que unicamente na entrega.
Obviamente, quando falamos em colaboradores, não pensem que os empreendedores e líderes estão fora dessa jogada. A pressão para manter o “business as usual” durante a pandemia aumentou os casos de burnout em líderes, principalmente em startups. Estudo feito com pessoas em posição de liderança nos Estados Unidos mostrou que 60% mostraram indicativos de esgotamento profissional no último ano. Pelo lado bom, vários executivos e C’Level começaram a falar mais sobre o que passaram, e o que antes era considerado “só uma crise de estresse”, conseguiu ser visto como a síndrome séria que é. Do outro lado, mostra que o cansaço, que levou ao “great resignation” não são movimentos, são sintoma de algo muito maior, afinal, as companhias não estão no vácuo.
Dois sul-coreanos mexeram com o nosso ano porque conseguiram, de uma forma bem direta – e quase que violenta – nos mostrar um espelho da sociedade atual. Um foi a série Squid Game, o outro foi Byung-Chul Han, o filósofo e escritor do livro “A Sociedade do Cansaço”. A série é uma crítica ao sistema que obriga a busca pelo dinheiro constantemente, sem pesar as consequências. Já o livro fala sobre algo mais profundo, que é como a tecnologia (mais especificamente, os smartphones) nos deu de ‘presente’ um mundo que nunca fica desconectado e que pede para que a gente também não fique. Uma sociedade que privilegia “o narcisismo e a individualidade” e a positividade (ou melhor, a incapacidade de se dizer não), sempre focada em desempenho, até mesmo nas atividades que deveriam ser de lazer.
Afinal, o burnout e as demissões são a mostra de que este modelo de trabalho que privilegia produtividade em cima da humanidade não está funcionando. O modelo que é exigido que as startups entreguem. Seja por quem investe, que já está olhando para as oportunidades da empresa se tornar unicórnio em menos tempo possível (10 meses, 11 meses…). Seja por parte dos consumidores, que exigem cada vez mais que os serviços digitais sejam perfeitos. Pegue o Uber ou um aplicativo de entregas, por exemplo. A gente sabe que há um churn alto e um número maior de reclamações quando esses serviços demoram, mesmo em dias de chuva ou de trânsito maior. A gente, como usuário, quer que eles sejam rápidos e certeiros, como se toda e qualquer empresa de tecnologia tivesse a estrutura de uma Big Tech. De certa forma, ao replicar essas ações, acabamos reforçando o mesmo ambiente de pressão por entrega que a gente rechaça. E a roda segue girando, com pressão para todos os lados.
Isso tudo aconteceu aos poucos. E não se criou espaço para, simplesmente, pensarmos ou darmos um pause em tudo. Imagine se o Rappi ou iFood anunciam que, neste final de ano, as entregas irão demorar mais, nem que sejam alguns minutos, porque gostariam de diminuir o ritmo e a pressão sobre shoppers e entregadores. Ou se a Uber e a 99 pedissem para os passageiros tentarem pré-organizar suas viagens, mesmo que seja com poucos minutos de antecedência, para ajudar a coordenar a disponibilidade de motoristas nas regiões. Vocês topariam? E os milhões de demissionários que criticam o sistema exaustivo das organizações onde trabalham, já pensaram como atuam enquanto consumidores? Como reagem quando seu Uber atrasa ou o seu pedido de sushi chega sem o hashi? Ao cobrar de outras empresas uma agilidade e perfeição contínua estamos alimentando esse ciclo virtuoso e, o pior de tudo, o boomerang pode chegar na sua nuca. Como? Pense que a startup na qual você trabalha pode atender como cliente umas das empresas dos exemplos acima que, ao sentir a pressão dos consumidores (talvez você incluso) sobre agilidade e perfeição, aumentam a pressão por seus processos e fluxos interno, repassando isso para seus fornecedores… que, bem, chegou no seu Slack (com urgência). Não tem como diminuir a pressão se não for um movimento coletivo. As demissões já foram um começo, foram um grito de que tem algo fora do lugar. Mas não podem parar por aí. Precisamos “arrumar a casa”. Seja dentro das empresas, criando sistemas mais refinados de feedbacks, pensado em dados, mas também na escuta ativa – e periódica – dos colaboradores e gestores, seja entendendo que as empresas reagem às demandas e necessidades dos consumidores, e que consumidores também são colaboradores de alguma empresa por aí… Afinal, se a gente quer mesmo mudar algo para 2022, e ter um ano mais calmo e tranquilo, que tal tentar desacelerar em tudo, inclusive na nossa vida pessoal e na forma como demandamos produtos e serviços? Começar com um olhar menos ansioso? Desconectar um pouco e tentar ver as pessoas que estão por trás de tudo que queremos que “funcione imediatamente e perfeitamente” se perguntando: “o que muda 10 minutos a mais ou a menos na entrega da pizza?” E, o principal; “o que muda na estrutura, e na pressão dos colabores, das empresas que fazem a entrega da pizza, esses 10 minutos a mais ou a menos?” Assim, criaremos, aos poucos, uma sociedade com maior equilíbrio, entendendo que, como um efeito borboleta e boomerang, cada minuto a menos na entrega do seu delivery, ou no tempo de chegada do seu carro, significa milhares de minutos a mais de terapia por aí, inclusive a sua.
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